sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Roland Barthes e sua mãe: Notas sobre o Luto.

(Artigo de Judith Thurman, publicada na revista New Yorker.
Traduzido para o português, via inglês, as notas em francês.)

Roland Barthes foi atropelado por uma van de lavanderia, assim que pisou fora de uma calçada de Paris, em 25 de fevereiro de 1980. Ele morreu um mês mais tarde
desses ferimentos - uma morte imbecil, poderia ter dito Camus. Ele tinha sessenta e quatro anos, e foi pranteado com algo da mesma intensidade com que ele pranteia sua mãe, nestes excertos. Eles foram tirados de notas que ele começou a manter a partir do dia da morte dela, aos oitenta e quatro anos, em outubro de 1977, e foram publicadas em francês pela primeira vez no ano passado.

Aqueles que amam Barthes são lembrados, por seus escritos, da verdadeira intimidade que vincula: suprema sintonia alternada com espantoso estranhamento. Instabilidade - a instabilidade de significado, em particular - é seu constante tema. O fragmento era, enfim, a forma mais congenial a ele. Barthes foi um teórico literário e um semioticista por profissão. Mas ele era também um homem de letras no mais amplo sentido, bem como certamente o maior estilista de prosa e o maior leitor apaixonado do pós-guerra da França. Não importa qual assun to - moral, estético, linguístico, de gênero, identidade ou desejo - sua escrita é sempre uma meditação sobre a vida e a morte. " O homem que sofre e o homem que cria", conforme T.S. Eliot, desconfiava um do outro. Nestes excertos a tristeza dá a Barthes a permissão para que não pudesse nunca desistir de si mesmo: deixar ir.

26 de outubro, 1977.
Primeira noite de casamento, mas primeira noite de luto?

27 de outubro
Todas as manhãs, por volta das seis e meia, escuro do lado de fora, a metálica raquete das latas de lixo. Ela poderia dizer com alívio: a noite finalmente acabou (ela sofria durante a noite, sozinha, uma coisa cruel).
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Assim que alguém morre, arrebatada construção do futuro (trocar a mobília, etc): futuromania.
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_ S.S.: Tomarei conta de você, prescreverei algum tranquilizante.
_ R.H.: Você tem estado deprimido por seis meses, porque você sabia. Perda, depressão, trabalho, etc, mas disse discretamente, como sempre.
Irritação. Não, perda (depressão) é diferente de doença. Do que deveria ser curado? Para encontrar qual condição, que vida? Se alguém está para ser nascido, essa pessoa não está em branco, mas é um ser moral, um tema de valor - não de integração.
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Todo mundo adivinha - eu sinto isso - o grau de intensidade da perda. Mas é impossível (sem sentido, signos contraditórios) medir o quanto alguém está aflito.
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_ "Nunca mais, nunca mais!"
_ E mesmo assim,
há uma contradição: "nunca mais" é a expressão de um imortal.
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Reunião abarrotada. Inevitável, crescente futilidade. Eu penso nela, no quarto ao lado. Tudo colapsa. É, aqui, o começo formal da grande, longa perda.
Pela primeira vez em dois dias, a noção aceitável, da minha própria morte.
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28 de outubro

Trazendo o corpo de mamãe de Paris para Urt (com J.L. e o empresário dos serviços funerários): parando para o almoço numa pequena espelunca para caminhoneiros, em Sorigny (depois de Tours). O empresário encontra um "colega" lá (levando um corpo para Haute-Vienne) e se reúne com ele para o almoço. Eu caminho alguns passos com Jean-Louis num dos lados da quadra (com seu horrível monumento aos mortos), chão de terra, o cheiro da chuva, do mato. E ainda algo com sabor de vida (por causa do doce aroma da chuva), a primeira descarga, como uma palpitação momentânea.

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29 de outubro

Que estranho: "Ela não está mais sofrendo", o quê, para quem este "ela" refere? O que significa este tempo de verbo?

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Uma assombrosa mas não angustiada noção - que ela não tem sido "tudo" para mim. Se tivesse, eu não teria escrito meu trabalho. Desde que tenho cuidado dela, os últimos seis meses de fato, ela era "tudo" para mim, e eu me esqueci completamente que eu tinha escrito. Eu não mais era nada senão desesperadamente dela. Antes, ela se fazia transparente para que eu pudesse escrever.

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Os desejos que eu tivera antes de sua morte (enquanto ela estava doente) não podem mais ser preenchidos, pois o que significaria isso é sua morte que me permite preenchê-los - sua morte poderia  ser uma liberação em algum sentido em relação aos meus desejos. Mas sua morte me mudou, eu não mais desejo o que costumava desejar. Devo esperar - supondo que tal coisa poderia acontecer - para que que um novo desejo se forme, um desejo seguinte de sua morte.

31 de outubro

Não quero falar sobre isso, por medo de fazer disso literatura - ou sem estar seguro de não fazer isso - embora por uma questão de fato literatura se origina
dentro dessas verdades.

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Segunda-feira, 3h da tarde

De volta pela primeira vez no apartamento. Como vou lidar com viver aqui totalmente sozinho? E ao mesmo tempo, está claro que não há outro lugar.

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Algumas vezes, muito brevemente, um momento branco - uma espécie de torpor - que não é um momento de esquecimento. Isso me aterroriza.

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Uma estranha nova acuidade, vendo (na rua) a feiúra das pessoas ou sua beleza.

3 de novembro

Por um lado, ela quer tudo, luto total, seu absoluto (mas então, não é ela, sou eu que a estou  investindo com a demanda para tal coisa). Por outro lado (sendo verdadeiramente ela mesma), ela me oferece luminosidade, vida, como se ela ainda estivesse dizendo: "Mas vá em frente, saia, divirta-se..."

4 de novembro

A idéia, a sensação que tive nesta manhã, da oferta de luminosidade no luto, Eric me conta hoje que acabou de de reler isto em Proust ( a oferta da avó para o narrador).
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Por volta das 6 da tarde o apartamento está aquecido, limpo, bem iluminado, agradável. Eu eu o torno assim, energeticamente, devotadamente (tendo prazer amargamente): de agora em diante e para sempre serei minha própria mãe.

5 de novembro

Tarde triste. Compras. Comprei (frivolidade) bolo para chá na padaria.
Atendendo um freguês à minha frente, a jovem atrás do balcão diz "eis aqui". A expressão que eu usava quando trazia alguma coisa à mamãe, quando estava cuidando dela.Uma vez, encaminhando para o final, meio-consciente, ela repetia, fracamente, "eis aqui"("estou aqui", uma palavra que costumávamos usar um para o outro em todas nossas vidas).
A palavra falada pela jovem na padaria me trouxe lágrimas aos meus olhos. Eu continuei a chorar por um bom tempo de volta ao silencioso apartamento.
Isso é como eu compreendo meu luto. Não diretamente na solidão, empiricamente, etc.;Parece-me que eu tenho uma espécie de conforto, de controle que faz as pessoas pensarem que estou sofrendo menos do que elas teriam imaginado. Mas isso me chega quando nosso amor de um para o outro é rompido mais uma vez.O ponto mais doloroso no mais abstrato momento...

9 de novembro

- Menos e menos para escrever, dizer, exceto isto (que eu não posso contar a ninguém).

10 de novembro

As pessoas lhe falam para manter sua "coragem". Mas o tempo para coragem foi quando ela estava doente, quando eu tomei conta dela e a vi sofrendo, sua tristeza, e quando eu tinha de segurar minhas lágrimas. Constantemente se tinha de tomar decisão, pôr uma máscara, e isso era coragem.
_ Agora, coragem significa que viverá e isso é tudo demais disso.

11 de novembro

Solidão= não ter ninguém em casa para quem se possa dizer, voltarei em tempo específico, ou a quem você possa ligar para dizer (ou a quem você possa simplesmente dizer), "eis aqui", estou em casa agora.

16 de novembro

Agora, em todo lugar, na rua, no café, eu vejo cada indivíduo sob o aspecto de inelutavelmente ter de morrer, o que é exatamente o que significa ser mortal. _ E, não menos obviamente, eu os vejo não sabendo disso assim.

17 de novembro

Luto: um país cruel onde eu não tenho mais medo.

26 de novembro

O que eu acho aterrador é o caráter descontínuo do luto.

28 de novembro

Para quem eu posso colocar essa pergunta (com alguma esperança de uma resposta)?
Ser capaz de viver sem alguém que você amava significa que você a amou menos que você pensava...?

30 de novembro
Não diga "luto". É psicanalítico demais. Não estou de luto. Eu estou sofrendo.

7 de dezembro

As palavras (simples) da Morte:
_ "É impossível!"
_ Por quê, por quê?"
_ "Para sempre"
etc.

8 de dezembro

Luto: não uma esmagadora opressão, uma interferência (que suporia um "reenchimento") mas uma disponibilidade dolorosa: Eu estou vigilante, expectante, esperando o começo de um "sentido da vida".

8 de janeiro, 1978

Todo mundo é "extremamente agradável" - e mesmo assim me sinto completamente sozinho ("Abandonitis")

12 de fevereiro

Neve, uma verdadeira tempestade de neve sobre Paris; estranho. Eu digo a mim mesmo, e sofro por isto: ela nunca mais estará aqui para ver isso, ou para eu descrevê-lo para ela.

18 de fevereiro

Eu tinha pensado que a morte de mamãe me faria alguém mais "forte", ter acesso conforme eu pudesse para a indiferença do mundo. Mas tem sido bem ao contrário: eu estou até mais frágil (sem surpresa: por nenhuma razão, um estado de abandono).

6 de março

Meu sobretudo é tão sombrio que eu sei que mamãe jamais toleraria o cachecol preto ou cinza que eu sempre uso com ele, e eu continuo a ouvir sua voz dizendo-me para usar um pouco de cor.
Pela primeira vez, então, eu decido usar um cachecol colorido (xadrez escocês).

3 de abril

Desespero: a palavra é teatral demais, uma parte da língua.

28 de maio

A verdade sobre o luto é muito simples: agora que mamãe está morta, eu me deparo com a morte (nada me separa mais disso, exceto o tempo).

7 de julho

Mostra de "Os Últimos Anos de Cézanne"
Mamãe: como Cézanne (as últimas aquarelas).
Cézanne é azul.

14 de junho
(Oito meses após): segundo luto.

15 de junho

Tudo começou de novo imediatamente: chegada dos manuscritos, pedidos, histórias das pessoas, cada pessoa impiedosamente pressionando antecipação de sua própria demanda (por amor, por gratidão): não demorou que ela partisse para que o mundo me atordoasse com sua continuidade.

17 de junho

primeiro luto
falsa liberdade
segundo luto
desolada liberdade
mortalmente, sem
valiosa ocupação

18 de julho

Cada um de nós tem seu próprio ritmo de sofrimento.

29 de julho
Biblioteca Nacional

Carta (de Proust) para Georges de Lauris, cuja mãe acabou de morrer (1907)
"Agora há uma coisa que posso falar: você apreciará certos prazeres que você não fantasiaria agora. Quando você ainda tinha sua mãe, frequentemente pensava nos dias quando não mais a teria. Agora você pensará frequente nos dias passados quando a tinha. Quando você se acostumar com essa horrível coisa que eles estarão para sempre na distância do passado, então você gentilmente sentirá seu renascer, voltando para retomar seu lugar, seu completo lugar, ao seu lado. No presente momento, isto não é possível. Deixe-se estar inerte, espere até o incompreensível poder...que te quebrou restaure-o um pouco, eu digo um pouco, pois que daqui por diante você conservará alguma coisa quebrada sobre você. Diga isso a você, também, pois é uma espécie de prazer de que você nunca amará menos, que você nunca será consolado, que você constantemente lembrará mais e mais".



Um comentário:

  1. "Cada um de nós tem seu próprio ritmo de sofrimento"
    E falar de luto é tão humano, como comer e beber...
    O luto doi...mas é necessário!

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