"Au grand galop de mon cheval, je paradais parmi les ventilateurs."
(Assim começa o livro Le Sabotage Amoureux de Amélie Nothomb, que traduzi com muito gosto, em 2007)
Em pomposo galope do meu cavalo, eu desfilava no meio dos ventiladores.
Eu tinha sete anos. Nada era mais agradável que ter ar demais no cérebro. Mais a velocidade assobiava, mais o oxigênio entrava e esvaziava a mobília.
Meu corcel chegou à praça do Grande Ventilador, chamada mais vulgarmente praça Tien An Men. Ele dobra à direita, bulevar da Feiúra Habitável.
Eu segurava as rédeas numa mão. A outra, se entregava a uma exegese de minha solidão interior, alternando a garupa do cavalo e o céu de Pequim.
A elegância de minha postura sufocava os passantes, os escarros, os asnos e os ventiladores.
Não tinha necessidade de ajustar minha montaria. A China a havia criado à minha imagem: era uma embalagem das grandes andaduras. Ela carburava ao fervor íntimo e à admiração das multidões.
Desde o primeiro dia, eu compreendera o axioma: na Cidade dos Ventiladores, tudo que não era esplêndido era medonho.
O que se reitera que quase tudo era medonho.
Corolário imediato: a beleza do mundo era eu.
Não que estes sete anos de pele, de carne, de cabelos e de ossatura tivessem sido algo a eclipsar as criaturas de sonho dos jardins de Alá e do gueto da comunidade internacional.
A beleza do mundo era minha pavonada oferta-do-dia, era a rapidez do meu cavalo, era meu crânio desdobrado como um véu aos sopros dos ventiladores.
Pequim cheirava a vômito de criança.
Bulevar da Feiúra Habitável, havia apenas o barulho do galope para encobrir as raspagens de garganta, a interdição de se comunicar com os chineses e o vazio horroroso dos olhares.
À chegada no recinto, o corcel diminuiu o passo para permitir me identificar aos guardas. Não lhes pareci mais suspeita que de ordinário.
Eu penetrei no seio do gueto de San Li Tun, onde eu vivia desde a invenção da escrita, quer dizer, desde cerca de dois anos, por volta do neolítico, sob o regime do Bando dos Quatro.
"O mundo é tudo o que acontece", escreve Wittgenstein, em sua prosa admirável.
Em 1974, Pequim não acontecia: não vejo como poderia melhor exprimir a situação.
Wittgenstein não era a leitura privilegiada dos meus sete anos. Mas meus olhos tinham precedido o silogismo acima para chegar à conclusão de que Pequim não tinha grande coisa a ver com o mundo.
Eu me contentava: tinha um cavalo e uma aerofagia tentacular no cérebro.
Tinha tudo. Eu era uma interminável epopéia.
Sentia-me ter parentesco apenas com a Grande Muralha: única construção humana a ser visível da Lua, pelo menos ela respeitava minha escala. Não restringia o olhar, ela o arrastava em direção ao infinito.
Cada manhã, uma escrava vinha me pentear.
Ela não sabia que era minha escrava. Se considerava chinesa. Na verdade, ela não tinha nacionalidade, pois que era minha escrava.
Antes de Pequim, eu vivia no Japão, onde se encontravam os melhores escravos. Na China, a qualidade dos escravos deixava a desejar.
No Japão, quando eu tinha quatro anos, possuía uma escrava de minha devoção pessoal. Ela se prostrava frequentemente a meus pés. E ficava bem.
A escrava pequinesa não conhecia esses costumes. De manhã, ela começava por pentear meus longos cabelos: engalfinhava-se neles como uma bruta. Eu uivava de dor e dirigia-lhe várias chicotadas mentais. Em seguida, ela me tricotava uma ou duas mechas admiráveis, com essa arte ancestral da trança à qual a Revolução cultural não tinha arrancado sequer um pêlo. Eu preferia que me fizesse uma só trança larga: parecia-me que isso convinha melhor a uma pessoa da minha classe.
Esta chinesa chamava-se Trê, nome que eu achava inadmissível de cara. Eu lhe fiz saber que ela passaria a se chamar pelo nome da minha escrava japonesa, que era charmoso. Me olhou surpreendida e continuou a se chamar Tre. Desse dia, eu compreendi que havia algo de podre na políica desse país.
Certos países funcionam como drogas. É o caso da China, que tem um impressionante poder de tornar pretensiosos todos que aí foram - e mesmo aqueles que dela falam.
A pretensão faz escrever. De onde um número extraordinário de livros sobre a China. A imagem do país que os inspirou, essas obras que são as melhores (Leys, Segalen, Claudel) ou o pior.
a continuar...
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